Acordei com uma barulheira assustadora e logo imaginei que o acampamento estava sendo atacado por gadjos e nosso povo nem tivera tempo de me acordar, mas o estranho é que não havia gritos, sons de agressão ou coisas que poderiam me levar a pensar que realmente o acampamento estivesse sendo atacado. Levantei sorrateiramente e nas pontas dos pés me dirigi a porta da tenda. Entreabri lentamente a tenda e espiei o lado de fora, muita gente agitada e correndo de um lado para o outro, tudo que meio desordenado, sem sentido, sem rumo e sem motivo aparente. Resolvi então, me trocar e sair da tenda a procura de mamãe.
Assim que saí, pude perceber o motivo de tanta balburdia, o céu estava escurecendo muito rapidamente e meu povo se mexia para guardar as suas coisas rapidamente, pois a chuva que se aproximava não seria uma chuvinha banal, o que fazia com que os adultos, principalmente as mulheres falassem alto e desordenadamente. Poucos minutos depois, o silêncio era tremendo e o único som que se escutava era o do vento forte cortando a vegetação e zumbindo com vontade, um tanto assustador para uma criança, não para mim que já não era nem criança, nem um homem feito, ainda, mas que não demoraria muito para me tornar um homem.
Pois é, o vento soprava cada vez mais forte e eu pensei que algumas das tendas poderiam não agüentar, voltei-me para a minha tenda e vi papai reforçando as amarras da tenda e mamãe estava guardando algumas coisas em nosso carroção que ficava ao lado de nossa tenda. Pensei em Yasmin e corri em direção a tenda dela, mas tudo já estava providenciado, seu pai acabara de reforçar as amarras e sua mãe já estava com ela e seus irmãos dentro da tenda. Tive juízo e retornei para minha tenda.
A esta altura o céu já estava escuro, como a noite, porém sem o maravilhoso encanto do brilho da lua. Era cedo e já tão escuro, não me lembro de ter visto o céu tão negro em nenhuma outra manhã. Do nada comecei a prestar a atenção no barulho ensurdecedor dos trovões que pareciam estar cada vez mais próximos e, o vento cada vez mais forte, já derrubava pequenas árvores e arrancava arbustos levantando-os até alguns metros do chão. Mamãe abraçou-me e a minha irmã, num abraço só, forte e apertado. Olhei em volta e não vi papai, então perguntei por ele a mamãe e, ela me informou que estava com outros homens verificando as amarras de outras barracas, os carroções e os animais. Havia algumas mulheres que tinham perdidos seus maridos em acampamentos anteriores e que precisavam da ajuda de nossos homens para enfrentar algumas adversidades.
Minutos depois a água começou a cair tão forte que parecia que alguma coisa lá em cima tinha-se partido, vi quando papai entrou correndo na tenda, completamente encharcado e disse a mamãe:
— Fizemos o que pudemos, agora só nos resta esperar e agradecer pela chuva que não caía há alguns dias. Afinal, precisávamos dela e ela veio. Vamos pedir a Deus que o estrago não seja grande e agradecer pela chuva tão necessária.
Durante toda manhã a chuva não diminuiu seu ritmo e sua fúria e por diversas vezes papai saiu da tenda para acudir outras pessoas, tanto que dentro de nossa tenda já estavam duas outras famílias a de Hussein e a de Neftah, assim eu supunha, que em outras tendas também haviam se juntado outras famílias cujas tendas não agüentaram o temporal. Muita gente falava em voz alta do lado de fora e eu imaginava que estavam sem suas tendas. Alguns gritos de pessoas que pareciam feridas e outras que pediam por socorro. Mamãe também saiu de nossa tenda algumas vezes e voltava sempre muito molhada.
Eu pensava em Yasmin, será que sua tenda estava agüentando aquela chuva sem tamanho? Será que ela estava bem? Será que ela estava pensando em mim? Que tortura... O que me acalmava é que sabia que nosso povo era muito unido e qualquer problema que um de nós tivesse, todos ajudariam e superaríamos o obstáculo rapidamente. Mas meu pensamento estava em Yasmin e por mais que tentasse desviá-lo, não conseguia. Eu a amava e nada poderia mudar isso. Portanto as minhas preocupações com ela sempre teriam sentido e razão de ser, afinal era o grande amor de minha vida e nada nem ninguém mudaria isso.
De repente, o dia começou a clarear, a chuva ainda era forte, muito forte, mas o dia já clareava, os raios e trovões que ouvimos durante horas, estavam se afastando e não parecia que poderiam voltar. A chuva começou a diminuir o seu volume e foi gradativamente ficando mais fraca.
O sol foi timidamente aparecendo entre as árvores e a garoa que caía já não assustava. Algumas pessoas já começavam a se movimentar do lado de fora da tenda e papai, também saíra. Mamãe consentiu e eu também saí para ver se alguém precisava de ajuda. Tomei um susto, o que vi me deixou muito preocupado, pois muitas tendas tinham simplesmente desabado e restavam apenas pouco mais da metade delas, em pé. Algumas carroças estavam irreconhecíveis e muitos animais se soltaram e estavam por toda parte, provavelmente alguns deles haviam fugido tentando se esconder da chuva. Corri até onde estava o papai e lhe perguntei se eu poderia reunir os animais e verificar se algum havia fugido. Diante da autorização corri para chamar os meninos maiores para me ajudar.
Foi um trabalho lento, pois muitos animais estavam longe de nosso acampamento e pelas contas do pai de Yasmin ainda faltavam alguns animais que haviam simplesmente sumido. Enquanto alguns homens ficavam a reconstruir as tendas que não suportaram o temporal, outros montaram e foram procurar os animais perdidos.
Considerando minha tarefa executada, fui procurar Yasmin e lá estava ela, linda como sempre e com uma carinha de preocupada. Perguntei-lhe se estava bem e ela afirmou que sim. Estendi minha mão e lhe disse: "— não se preocupe vamos reconstruir tudo e recuperar os animais perdidos afinal, nosso povo não desiste nunca, não é?"
Nesta tarde não ficamos juntos lá no riacho, pois havia muito a fazer e todos precisávamos colaborar.
Já era bem tarde da noite quando os poucos homens que ainda não tinham voltado, chegaram trazendo alguns animais. Todas as tendas estavam reconstruídas, algumas ainda improvisadas, pois precisavam de pequenos reparos que não poderiam ser feitos ainda aquela noite, mas a vida já voltava ao normal e como não poderia deixar de ser nosso povo se abancou em volta da fogueira para cantar, dançar, comer e beber.
Aproveitamos eu e Yasmin para ficarmos juntos a porta de sua tenda, assistindo nosso povo guerreiro, unido e muito feliz se divertindo depois de mais um dia que parecia que não teria fim. Um dia em que mais uma vez ficou provado que a união faz a força e, juntos não seremos destruídos como a maioria das raças, o são. Nossa capacidade de recomeçar e reconstruir é enorme e a vontade de viver é maior ainda. Pois amamos a natureza e ela nos ama. Nem as tempestades de chuva, vento e areia, nem as pestes, nem as guerras, que eu não sabia bem o que eram, conseguiriam nos destruir, pois éramos unidos pelo mesmo amor ao próximo, que tanto, nós ouvíamos falar e, pelo sentimento de liberdade que não tem tamanho e norteia a vida de todo homem de bem; Éramos ciganos! Sim senhor, éramos ciganos e a meu ver, os ciganos são imortais!
Autor: Julio Roberto Santos
(Narrado pelo espírito de Hiago, o cigano)