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20/07/2011

A Perda...

Comecei o meu treinamento de abridor de caminhos e essa atividade me forçaria a estar ausente por diversas vezes do meu amado Acampamento, pois uma das partes mais instrutivas era a questão da sobrevivência na selva, no deserto, nos vilarejos e nas cidades.


Numa dessas saídas que demos, ao entrar num vilarejo algumas pessoas começaram a nos xingar e a gritar que não nos queriam lá, chamando-nos de ciganos, de uma forma como se cigano fosse algo terrível. Entramos em um estabelecimento e compramos comida e quando eu ia colocar a comida em minha boca, um senhor deu um tapa no meu prato que o jogou a alguns metros de distância e com essa atitude, a raiva tomou conta de mim e lhe dei um soco, o que fez com que acabássemos em uma briga generalizada. Eram seis ciganos - um líder e cinco aprendizes -, contra uma multidão. Gente que aparecera não se sabe de onde, mas uma verdadeira multidão.

Como resultado daquela briga, nós fomos presos depois de apanhar muito. Fomos tratados como bêbados e arruaceiros, mas depois de uma tarde e uma noite na prisão, fomos libertados com a promessa de sairmos da cidade, sem o direito de olhar para trás.

Num outro dia, eu e meus companheiros estavamos muito cansados, e resolve parar para beber água em um riacho, quando eu levantei a cabeça, vi que já estávamos cercados por cerca de vinte pessoas que queriam saber com autorização de quem estávamos em suas terras e por que bebíamos de sua água. O resultado foi mais uma noite na prisão.

Foram tantas as ocorrências em que fomos presos que não entendo como as pessoas conseguem viver bem entre elas, pois usam a natureza como se fosse propriedade particular e ainda cobram da gente por serviços que a natureza presta espontaneamente.

Em uma ocasião, um dos nossos resolveu responder a um dos homens que nos inquiriam sobre o porquê dormimos ali em seu terreno e levamos uma surra inesquecível. Alguns dos nossos tiveram que ser carregados de volta ao Acampamento de tantos ferimentos que possuíam.

A pior das experiências ocorreu na mata. Estávamos acampados em um lugar de mata fechada e fomos acordados no meio da noite, aos chutes e pauladas sob a acusação de que havíamos invadido as terras de um senhor gordo e com cara de mau, que estava presente. Não houve possibilidade de defesa e nada pudemos dizer, pois só nos restou pegar o que podíamos e sair dali o mais rapidamente possível. Quando conseguimos nos desvencilhar daquele bando de homens, depois de muito correr, demos pela falta de Hussein.

Esperamos algum tempo e antes que o dia raiasse voltamos ao local de onde tínhamos sido expulsos, porém para nossa tristeza e surpresa, encontramos o corpo de Hussein, um jovem de apenas quinze anos, sem as suas roupas e completamente mutilado. Foi a pior cena que pude testemunhar, em vida. Estava irreconhecível, sem um dos braços, com uma das pernas voltada para trás, sem um dos olhos e com muitos sinais de facadas ao longo do corpo. Olhamos em volta e depois de muito procurar localizamos o braço dele que estava atado a uma corda e a uns duzentos metros do local de onde estava o restante do corpo. Havia sido arrancado, muito provavelmente, com ele ainda vivo. Foi uma cena horrível, indescritível e incompreensível.

O instinto de vingança que senti foi imenso, quase insuportável, mas seguimos as instruções de nosso guia e voltamos ao Acampamento, para conversar com nosso líder, pois nós que havíamos participado daquela chacina, como vítimas, não conseguiríamos raciocinar.

Quando chegamos ao nosso Acampamento já era início de tarde e o nosso guia foi ter com o pai de Yasmin que de imediato, mandou um grupo de homens buscar o que restava do corpo de Hussein, porém os homens não encontraram mais o corpo dele e ainda quase foram emboscados por um grupo muito maior do que aquele que nos atacou. Por sorte e experiência do líder se safaram ilesos, mas voltaram para o Acampamento com as mãos vazias.

Foi um dia de muita tristeza e lamentações, onde todo o nosso grupo foi solidário aos familiares de Hussein, o meu melhor amigo, que havia partido em definitivo desta para melhor, pelo menos é o que nossa crença pregava sem, contudo, me deixar satisfeito por isso.

No fim da tarde, não fui me encontrar com Yasmin. Não concebia perder alguém de quem gostava tanto e que nada fez de mal para merecer tal destino, além do mais, todos fomos aconselhados a esquecer qualquer tipo de vingança, pois não havia autorização do nosso líder ou do conselho.

À noite, rolava de um lado para outro sem conseguir dormir, foi então que mamãe, percebendo minha inquietação, me chamou e pegou minhas mãos entre as suas, dando-me mais uma orientação:

— Hiago, eu sei exatamente o que sente. Consigo sentir a pulsação de seu coração e todo o transtorno que você está vivendo, mas esse sentimento de vingança não irá trazer o seu melhor amigo de volta, aliás, não há nada que possa fazer, que o traga de volta à vida. A humanidade que se diz civilizada age de forma que nós, os ciganos, não compreendemos, não aceitamos e não concordamos, mas também não há nada que possamos fazer para trazê-lo de volta. A indignação que você está sentindo é justa e tem o seu significado, porém não devemos pagar violência com violência, pois só quem perde com isso é toda a humanidade. Se nós formos violentos, qualquer outra caravana que passe por aquelas terras, sejam ciganos, ou não ciganos sofrerão as conseqüências dessa nossa violência, com mais violência. É preciso ter mais coragem para perdoar do que para se vingar e, vingança atrai vingança e sangue derramado, trás mais sangue derramado. Portanto, resta-nos apenas rezar para que esses assassinos não produzam a morte de mais ninguém e esperar que jamais fiquem impunes às leis de Deus. Afasta de teu coração esse sentimento e essa mágoa, você deve lembrar-se apenas que Hussein foi um bom amigo, enquanto viveu e que precisa de suas orações agora, neste momento, pois ele mesmo, eu tenho certeza, de que não deseja vingança.
Confesso que o ódio que senti acabou se transformando em indignação, por não poder fazer nada para restaurar-lhe a vida e jurei para mim mesmo, que faria, dali em diante, tudo o que pudesse para não deixar mais ninguém morrer, pois sabia na minha própria carne que com a morte de um, muitos outros sofrem.


Autor: Julio Roberto Santos 
(Narrado pelo espírito de Hiago, o cigano)

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