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18/07/2011

O Livre-Arbítrio...

Mamãe sempre dizia que “não há mentira que sempre dure” e foi assim que acreditei ser, na vida. Em nossos tempos livres, as brincadeiras mais duras e ou mais ardilosas onde o oponente sempre acabava chateado ou humilhado tinha o dedo de meu meio-irmão e não demorou muito para que algumas pessoas de nosso Acampamento começassem a perceber que ele não era extremamente o bom rapaz de quem todos gostavam, pois tinha um ar de maldade em algumas de suas brincadeiras e passaram a comentar com os demais que meu meio-irmão não era totalmente confiável.

Em um determinado dia, após o cumprimento de nossas tarefas decidimos por influência de meu meio-irmão brincar de esconder e ficou estabelecido que não poderíamos utilizar nada do Acampamento para nos esconder, que valia apenas a mata e o rio. Yasmin chegou a confidenciar para mim que não brincaria, por que viu um de nós envolto em sangue e ela não queria correr riscos. Achei que era bobagem e aceitei brincar.

Combinados, passamos a nos esconder nos mais variados lugares, porém o estranho é que Shain sempre se dirigia para a mesma direção e nunca era encontrado. Quando Hussein ficou com a responsabilidade de procurar-nos já havia percebido que o único que ia sempre na mesma direção era meu meio-irmão e pôs-se a caça dele em primeiro plano.

Depois de se aprofundar na mata por algum tempo deu um grito que parecia conter muita dor. Todos nós corremos na direção do grito e quando chegamos Hussein se contorcia em dores e sua perna sangrava muito, pois havia caído em uma armadilha para pegar animais pequenos que utilizávamos para nos prover de caça, mas a região onde brincávamos era em um local reservado para as crianças do Acampamento, ou seja, nenhum de nossos caçadores tinha autorização para colocar armadilhas naquele ponto.

Retornamos ao Acampamento carregando nos braços Hussein e o entregamos aos curandeiros. O Pai de Kalil lembrou que nenhum de nossos caçadores poderia ter montado tal armadilha e que isso só poderia ser brincadeira de alguns dos jovens, já que os que não tinham a habilidade de caça, não tinham orientação para a montagem de armadilhas e, portanto não poderia ser obra de um caçador. Foi nessa hora que todos os olhos se voltaram para meu meio-irmão. Ninguém pronunciara qualquer palavra, mas todos tiveram o mesmo pensamento, eu supunha.

Outras brincadeiras do gênero foram ocorrendo e sempre alguém saia machucado por fora ou por dentro. Cansado de ver meus amigos machucados ou humilhados, perguntei a mamãe por que não havia ninguém dentre nós que não acabasse com esse tipo de brincadeira maldosa. Que embora todos parecessem saber a autoria, ninguém fazia nada. Mamãe remexeu as almofadas onde costumava se sentar para que ficassem bem fofinhas, sentou-se, fez aquele ar de sabedoria que sempre utilizava quando vinha com mais uma de suas lições e pôs-se a dizer:

— Hiago, já conversamos muitas vezes como bons amigos e pessoas que se amam agem assim, e sempre que conversamos, nós dois sentimos que há um imenso carinho e muito respeito entre nós. Nossas conversas são sempre francas e muito honestas e eu jamais lhe diria algo que não fosse para o seu bem. Você concorda com isso?

— Sim, mamãe.

— Um de nossos maiores mandamentos e que respeitamos acima de qualquer outro é o livre-arbítrio. Isso quer dizer que qualquer pessoa tem o direito de escolher o que quer ou deseja ser e quais os meios que vai utilizar para chegar onde deseja. Deus nos deu esse direito e é em nome dele que nós, os ciganos, perambulamos de Acampamento em Acampamento sem nos aprisionarmos a quem ou onde seja. É uma forma de vida completamente livre, pois nós a escolhemos e quando um de nós se vai espontaneamente, alguns sofrem com sua ausência, mas não fazemos nada para detê-lo, pois cremos que ele tem o direito de escolha. No que se refere a sua pergunta, nós entendemos que cada um escolhe ser, como deseja ser e ninguém fará nada para impedir que a pessoa mude sua postura. Enquanto a convivência for pacífica e não houver um mal-estar geral em relação a qualquer pessoa, ninguém tirará o seu direito ao livre-arbítrio, pois ele foi dado por Deus e um humano, não tem o poder de tirá-lo de seu semelhante. Todos somos bons e maus, ou seja, ninguém é completamente bom, assim como, ninguém é completamente mau. Mesmo que uma pessoa se volte para o lado do mau, nós somente pediremos que se afaste de nós, pois esse é um direito que o nosso livre-arbítrio nos propicia, porém, ainda assim, não tiraremos dele o seu livre-arbítrio e sendo assim ele continuará a ter o seu direito preservado.

— Compreendo mamãe. Yasmin viu que alguém se machucaria e resolveu não participar da brincadeira, neste caso, ela usou o seu direito ao livre-arbítrio, eu por minha vez, decidi que iria brincar e desta forma também utilizei o meu direito ao livre-arbítrio. Cada um de nós usa esse direito em cada coisa que se presta a fazer ou a não fazer. É isso?

— Isso mesmo. Sempre a cada escolha que fazemos, nós nos utilizamos desse direito e os demais sempre respeitam as nossa escolhas. Naquela época em que você por causa do que sente por Yasmin, deixou de fazer suas tarefas, você fez uma escolha, porém o nosso grupo distribui as tarefas de forma para que cada um de nós trabalhe menos, para podermos aproveitar mais o que a vida nos dá. Sua escolha estava interferindo no bom andamento das nossas tarefas, então sua próxima escolha deveria ficar entre trabalhar ou sair do Acampamento, pois estaria interferindo no grupo todo, compreende? Nós, seu pai e eu, não o forçamos a trabalhar, mas o orientamos no sentido de que era necessário que executasse suas tarefas, porém é uma das regras para a boa convivência no grupo, então não poderíamos agir de outra forma, para não interferir no livre-arbítrio do restante de nosso grupo. Tenha isso sempre bem vivo em sua mente, pois sem isso suas escolhas não serão suas, mas sim parte das escolhas dos outros.

— Mas, porque um dos adultos não conversa com ele para que ele pare de ferir outras pessoas?

— Bem, nesse caso, cabe somente a mãe e ao pai dele conversarem com ele para que modere suas atitudes e não prejudique aos seus semelhantes.

— Então, porque a senhora não fala com o papai para ele ir conversar com ele?

— Por que eu estaria me metendo onde não devo. Cabe a mim, a sua educação e de sua irmã, exclusivamente e, seu eu falar com seu pai sobre a educação de seu outro filho, estarei interferindo em seu direito de educá-lo como ele e a mãe do menino entenderem ser a forma correta.

Refleti muito em todas as suas palavras e acabei por me convencer de que não poderia interferir nas escolhas dos outros, por que se eu interferisse, no final das contas estaria permitindo aos outros que interferissem nas minhas escolhas.

O final de tarde havia chegado, depois de me banhar, trocar de roupa fui exercer o meu direito ao amor, pois essa era uma escolha perfeita, a mais gostosa das escolhas que eu já havia feito; Amar Yasmin.



Autor: Julio Roberto Santos
(Narrado pelo espírito de Hiago, o cigano)

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