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27/02/2011

O Ciúme...

Já se formava um pequeno vilarejo próximo ao nosso acampamento, afinal do outro lado da margem do riacho era uma rota de caravanas de todos os tipos; mercadores, viajantes, pensadores, profetas, etc...

Algumas dessas famílias que ali se alojaram estavam interessadas em comercializar seus produtos, outros se instalaram por que buscavam a melhoria de sua saúde que as nossa ervas proporcionavam, outros ainda estavam lá pela riqueza da fauna e flora. Havia muita caça e muito peixe e havia também a nossa plantação que fornecia uma imensa quantidade de alimentos e onde há fartura, certamente há quem a consuma.

Num determinado dia chegou ao vilarejo uma caravana de mercadores eram uns dez carroções repletos de todo tipo de mercadoria. Temperos, grãos, sementes, tachos e vasilhas de metal e cerâmica, ferragens de todo tipo, tapetes, peles e bugigangas que não serviam para nada e outras de utilidade duvidosa.

No dia seguinte à chegada da caravana de mercadores, uma das crianças da caravana ficou ardendo em febre e sua mãe veio até o nosso acampamento, procurar ajuda de nossa anciã curandeira. A menina foi removida até nosso acampamento e sua mãe se instalou temporariamente entre nós, utilizando-se de uma tenda de um dos nossos, para esperar pela completa recuperação da menina, já que esse, havia sido o conselho de nossa anciã.

Em cerca de três dias a menina começou a mostrar sinais de melhora e passou a receber a visita de outros de sua caravana e foi numa dessas visitas que um rapaz magro, de pequena estatura e cerca de uns quatorze anos, portanto mais velho do que eu, se aproximou de Yasmin para conversar.

Os dias foram passando e eu percebi que o rapaz ficava cada visita mais tempo em nosso acampamento, porém ficava mais tempo conversando com Yasmin do que ficava com sua irmã (a doente). O Interesse nela estava muito claro, porém eu havia aprendido que ao receber um estranho em nosso acampamento devíamos fazê-lo com cortesia e muita desconfiança e sabia também que os mais velhos já estavam de olho no rapaz. Mas a situação das visitas não poderia ser alterada, então eu pensei que como a melhora da irmã do rapaz era acentuada, ele certamente logo iria embora e pararia de me incomodar.

No dia em que a menina se recuperou totalmente, ela e sua mãe partiram para se juntar a caravana do outro lado do riacho e imaginei que certamente não os veria mais. Tremendo engano... No dia seguinte, mais ou menos na mesma hora de sempre o rapaz estava lá, de volta ao nosso acampamento e com umas flores na mão. Olhei em volta e não havia um só homem e uma só mulher que ali, naquele momento, não estivesse encarando o rapaz, mas ele acostumado a visitar todo tipo de gente não se importou com os olhares e se dirigiu para a tenda da família de Yasmin. Chamou-a e lhe entregou as malditas ervas, ela por sua vez as cheirou, agradeceu e voltou para a tenda, sendo que o rapaz ainda permaneceu por algum tempo, ali parado como que esperando mais alguma coisa, porém ele logo se deu conta que era alvo de todos os olhos disponíveis de nosso acampamento e se retirou silenciosamente.

No fim da tarde, como de costume, fui ao riacho me encontrar com Yasmin e resolvi lhe perguntar:

— Por que você recebeu as flores daquele estranho? Por que não as jogou fora no momento em que ele as ofereceu a você?

— Ora Hiago, o jovem só estava sendo gentil e não havia motivo para que tivesse que ser indelicada com ele.

— Indelicada? Ele invade nosso acampamento com um amontoado de ervas daninhas nas mãos as oferece a você, a minha prometida e, você acredita que seria indelicado não aceitar um presente desses de um estranho? Será que não percebeu o olhar de condenação de todos de nosso acampamento?

— O rapaz só quis ser gentil e além do mais, ele não invadiu o nosso acampamento, pois já esteve aqui outras vezes e sempre foi bem recebido por todos nós.

Aquela discussão levou todo o tempo que dispúnhamos para ficarmos juntos e acabou não dando em nada, pois Yasmin achou normal a "gentileza" do rapaz e embora eu tentasse não consegui convencê-la de que aquela atitude dele havia sido completamente desnecessária. Se ele queria agradar alguém por que não entregou aquele mato para a anciã que curou sua irmã?

Outros dias se passaram e sempre o rapaz voltava ao nosso acampamento para conversar com Yasmin. Muitas vezes a cumprimentava e ia embora outras vezes ele chegava a ficar conversando por algum tempo e depois ia embora. Isso certamente seria normal se Yasmin não estivesse prometida a alguém, mas estava e era a mim que a haviam prometido. Não tive dúvidas, ao invés de ficar discutindo com Yasmin - o que já ocorrera muitas vezes - passei a planejar um jeito de me livrar daquela visita constante e inconveniente.

Esperei por ele na ponte de madeira que as pessoas utilizavam para atravessar o riacho e quando ele foi atravessar soltei um tronco que eu havia amarrado com uns cipós no topo de uma das arvores e como um pêndulo o tronco bateu na ponte e o rapaz perdeu o equilíbrio e caiu dentro da água. Foi muito divertido vê-lo ensopado e com a roupa coberta de lama voltando para sua caravana.

Todos souberam do ocorrido, mas nada me falaram a não ser Yasmin que me criticou e defendeu o "pobre rapaz". Mas essa discussão com Yasmin resultou em uma briga feia que fez com que eu tomasse a atitude de não ir mais ao encontro dela nos finais de tarde, pelo menos por um tempo, eu imaginava.

Vigiava cada passo e movimento das pessoas da caravana dos mercadores com muito cuidado e muita atenção, mas não dispunha de todo o tempo, pois eu tinha as minhas tarefas e não poderia deixá-las de lado. Mas um dia percebi uma movimentação diferente na caravana, por que os seus ocupantes não desfizeram a carga dos carroções, como toda manhã. Todo o material que possuíam estava guardado e assim permaneceu. Um pouco antes de mamãe nos chamar para o almoço, vieram ao nosso acampamento os pais, a menina que estava recuperada e seus dois irmãos, sendo que um deles, o mais velho era o tal engraçadinho que não desgrudava de Yasmin. Dirigiram-se a tenda da curandeira e lá ficaram por algum tempo, porém o rapaz foi direto ter com Yasmin e lhe disse que estava indo embora e se ela quisesse ele voltaria depois de algum tempo para buscá-la, por que tinha amor por ela e sabia que ela também tinha amor por ele.

Um silêncio nunca ouvido havia tomado conta do acampamento, todos, absolutamente todos pareciam ter ouvido o convite e estavam fixados no rapaz, mesmo quem estava dentro de sua tenda saiu para fitá-lo, até seus pais saíram da tenda da anciã curandeira para admirar aquela ridícula cena de amor e nosso líder então falou em nome de todos nós:

— Esse acampamento acolheu ao senhor e sua família num momento em que precisavam de ajuda, acompanhamos com muito zelo a recuperação da moça que é sua irmã e sempre os recebemos bem, mesmo depois dela ter sido curada. Acreditamos que o senhor não quis ofender a esse acampamento com um convite absurdo como o que acaba de fazer, mas pedimos que o senhor reúna-se com os seus e retome seu caminho imediatamente. Nada lhes foi tirado e nada que possuímos lhe interessa, então façam o favor de retirar-se agora, enquanto são bem vindos neste acampamento. Reúna-se com seus pais e irmãos e vão agora, afinal nada mais têm a fazer por aqui.

O resto daquele dia o acampamento permaneceu em silêncio, não houve o corre-corre das brincadeiras das crianças, o vozerío das mulheres do acampamento que sempre falam muito alto, o barulho feito pelos homens que moldam os metais e a música que acompanha o dia-a-dia do acampamento, nada foi ouvido, somente o som do vento passando entre as árvores, o barulho das águas do riacho, o canto dos pássaros, das aves e rugido dos animais. O som da natureza era o som ouvido.

Caiu a noite e o acampamento continuou em silêncio e fui dormir ouvindo como raras vezes ocorreu, o som da natureza.

Assim que amanheceu decidi conversar com mamãe sobre o estranho sentimento que senti durante a permanência da caravana dos mercadores e, ela me ouviu descrever a imensa dor que senti em absoluto silêncio, como se respeitasse a minha dor. Quando terminei a minha narrativa ela disse:

— O sentimento que tomou conta de você durante esse tempo todo é chamado de ciúme. Ele é portador de notícias sempre muito ruins e tristes, não há conhecimento de que esse sentimento tenha causado bem a nenhum dos lados; a quem sente o ciúme e a quem é o objeto do ciúme. Raramente histórias de ciúmes terminam em paz, em sua maioria são histórias sangrentas onde paira um clima fúnebre e a morte é eminente. Quando não há morte a violência que se apresenta é notória e alguém acaba ferido. Mesmo que não haja feridos físicos, sempre há feridos emocionais e, em sua maioria essas feridas emocionais não se curam e deixam marcas profundas que acabam por destruir pessoas e relações. Enfim, é um dos mais cruéis sentimentos da humanidade, que por vezes levam a uma doença que se chama "insanidade" e por outras deixam lares despedaçados e corações mutilados.

— Significa que posso estar doente?

— Não, meu filho. Seu comportamento não foi o de quem pode ficar acometido pela doença causada pelo ciúme, mas é preciso se preocupar sempre em manter o controle para que o ciúme não venha a destruí-lo, já que pode se transformar em uma doença. É necessário não permitir que o ciúme assuma o comando de sua vida, pois é um mal que depois de instalado dentro da pessoa é de muito difícil recuperação. Quando você fez a armadilha na ponte não pensou na hipótese de que algo podia dar errado e você ao invés de acertar a ponte poderia ter acertado o rapaz e tê-lo deixado machucado ou coisa ainda pior. É assim que o ciúme age, inibe o raciocínio humano, a pessoa fica cega e só consegue pensar em se livrar daquele que o ameaça. Em muitos casos pode levar à morte de algum dos envolvidos como eu já lhe disse e, isso é uma agressão a liberdade.

— Como assim?

— Nós os ciganos, somos os maiores defensores da liberdade humana. Acreditamos que o ser humano nasceu para ser livre e defendemos essa idéia com a nossa própria vida, se for preciso, então, não podemos aceitar que alguém seja dono de outra pessoa. O ciúme é um sentimento de posse, onde quem o sente acha que tem o direito total sobre a vida de outra pessoa e isso não é verdade. Nascemos para sermos livres e é assim que devemos ser. Ninguém pode ser dono de outra pessoa, pois nascemos livres e vivemos para a liberdade, portanto, o ciúme deve ser encarado como um dos nossos maiores inimigos.

— Aqueles que sentem ciúme podem ser curados?

— Sim, quando se trata de sentimentos ruins, todos eles podem ser curados ou pelo menos tratados. O que quero dizer é que um sentimento que faça sofrer é sempre ruim e pode e deve ser tratado. A conversa com alguém de nossa confiança, ajuda a ir gradativamente moldando esse sentimento para que ele deixe de ser nocivo. Agora estamos conversando sobre o ciúme e sei que você sairá daqui bem melhor. Talvez sejam necessárias outras conversas nossas sobre esse sentimento ruim, mas ao conversarmos, nós faremos com que esse sentimento ruim esteja sempre sob controle e não o faça sofrer. Sempre que possuir um sentimento que o faça sofrer deve procurar alguém de sua confiança para conversar. Essa é sem dúvida uma forma tranqüila de manter qualquer sentimento ruim sob controle.

— Deveríamos ter conversado antes de eu montar aquela armadilha, não é mesmo?

— Isso poderia ter evitado que você corresse um risco desnecessário e que poderia ter conseqüências desastrosas.

— Uma outra coisa ainda não entendi. Porque o silêncio em nosso acampamento depois do acontecido com o rapaz e Yasmin.

— Sempre que somos forçados a pedir para alguém se afastar de nós, ou sempre que nos sentimos ofendidos é preciso que avaliemos onde foi que erramos. Raramente alguém agride outra pessoa se esta não errou em alguma coisa. Nesse caso específico, o rapaz tentou levar uma das nossas e o pior é que é uma moça comprometida e como tal merece respeito. Acontece que Yasmin por ser ainda uma criança, não percebeu as intenções do rapaz e nós, os mais velhos, falhamos por não ter percebido que aquela aproximação poderia ir tão longe. Todos erramos, e estamos refletindo sobre isso. Para que no futuro não erremos mais.

A lição ensinada com amor é sempre bem aproveitada, e foi assim que mamãe me passou o seu conhecimento sobre liberdade e ciúme. Uma lição que jamais esqueci.



Autor: Julio Roberto Santos
(Narrado pelo espírito de Hiago, o cigano)

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